A dor provocada por um câncer agressivo já seria, por si só, um desafio imenso para qualquer adolescente. Mas, para uma jovem de 14 anos, moradora de Luziânia, em Goiás, o sofrimento ultrapassou os limites físicos e chegou ao psicológico. Aluna do Colégio Estadual Osfaya, a estudante foi vítima de bullying sistemático dentro da escola, justamente por conta da sua condição de saúde. O caso foi investigado pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), que indiciou a diretora e a coordenadora da unidade de ensino por omissão.
A jovem, diagnosticada em 2023 com osteossarcoma — um tipo de câncer que afeta os ossos —, utiliza uma prótese na perna como parte do tratamento. De acordo com a Polícia Civil de Goiás (PCGO), esse foi o principal motivo das agressões que partiam de duas colegas de sala, que passaram a insultar e constranger a estudante nos últimos três meses.
Segundo o delegado responsável pelo caso, a aluna passou a relatar episódios frequentes de humilhação, deboches e exclusão social, sofrendo consequências emocionais graves. “Ela já enfrentava um tratamento doloroso e desgastante, e ainda teve que suportar a violência moral dentro de um ambiente que deveria ser acolhedor”, destacou o delegado.
A situação se agravou porque, apesar das denúncias formais feitas pela família da vítima à direção da escola, nenhuma providência efetiva foi tomada. Conforme apontam as investigações, tanto a diretora quanto a coordenadora tinham pleno conhecimento do que estava acontecendo, mas se mantiveram inertes.
Indiciamento por omissão
Com base nos depoimentos, provas testemunhais e registros coletados, a PCGO concluiu que houve negligência por parte da gestão escolar. A diretora e a coordenadora administrativa foram indiciadas por prática de bullying na forma omissiva, conforme previsto na Lei nº 13.185/2015, que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática. Além disso, também foram enquadradas por violação dos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê a proteção integral como um dos pilares do atendimento a crianças e adolescentes.
“A omissão de uma autoridade escolar diante de um quadro como este não pode ser naturalizada. O silêncio da gestão contribuiu diretamente para a continuidade das agressões e o agravamento do sofrimento da vítima”, afirmou a delegada Renata Vieira, da DPCA de Luziânia.
Ainda de acordo com a polícia, o colégio ignorou não apenas os apelos da família, mas também sinais claros de vulnerabilidade da estudante, que passou a apresentar sintomas de ansiedade, tristeza constante e resistência em frequentar as aulas.
Autorias confirmadas
As duas alunas que praticavam os atos de bullying também foram identificadas pela investigação. Elas são menores de idade e, por isso, os nomes não foram divulgados. A PCGO reuniu provas materiais e testemunhais que confirmam a participação direta de ambas nos episódios de agressão moral e exclusão da colega.
O inquérito foi finalizado e encaminhado ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, que devem analisar o caso e decidir sobre as medidas cabíveis contra as adolescentes e as servidoras públicas envolvidas.
O silêncio que machuca
Casos como o ocorrido em Luziânia reacendem o debate sobre o papel das escolas na prevenção e no combate ao bullying, especialmente em situações em que as vítimas se encontram em condição de saúde frágil ou vulnerável.
Especialistas ouvidos pela reportagem alertam que a responsabilidade da escola vai além do ensino formal. “O ambiente escolar deve ser um espaço seguro para todos os alunos. Quando uma criança com câncer é alvo de chacota e a direção não age, isso configura um rompimento grave com a missão da educação”, observa a psicopedagoga Andréa Lima.
Ela ressalta que a legislação brasileira é clara ao estabelecer a obrigação de proteção às crianças e adolescentes dentro das instituições de ensino, com dever de atuação imediata em casos de agressão. “A omissão não pode ser tratada como erro administrativo, mas como conivência com a violência”, completa.
Consequências psicológicas e sociais
Ainda em tratamento contra o osteossarcoma, a adolescente tem enfrentado dificuldades emocionais decorrentes da convivência escolar. Segundo a família, a jovem passou a apresentar resistência para sair de casa, perdeu o apetite e teve episódios de crise de ansiedade.
“A gente esperava apoio da escola, mas encontramos portas fechadas. Foi um momento devastador para a nossa filha e para toda a família”, desabafou a mãe da vítima, que preferiu não ser identificada.
O caso ganhou ampla repercussão nas redes sociais, com manifestações de solidariedade à jovem e pedidos de punição exemplar às responsáveis.
Próximos passos
Com o inquérito finalizado, o Ministério Público de Goiás deve se pronunciar nos próximos dias. As educadoras poderão responder judicialmente pelos atos de omissão, com possíveis sanções administrativas e penais. Já em relação às adolescentes agressoras, caberá ao Juizado da Infância e da Juventude definir as medidas socioeducativas aplicáveis.
Nota da Secretaria Estadual da Educação
Em atenção à solicitação de informações sobre a estudante I.P.S, aluna da Escola Estadual Osfaya, em Luziânia, a Secretaria de Estado da Educação de Goiás (Seduc/GO) responde:
A direção da unidade escolar acompanha a estudante desde que foi informada sobre a questão da saúde da aluna;
Para garantir que não haja prejuízo na aprendizagem, a instituição de ensino passa o material de recomposição da aprendizagem e presta apoio pedagógico à estudante;
A direção da escola destaca que não foi informada pela família sobre a ocorrência do bullying e que só ficou sabendo do caso a partir da veiculação de um vídeo sobre o assunto pelas redes sociais;
No Boletim de Ocorrência (B. O.), registrado pela mãe da estudante na delegacia, ela mesma admite que ainda não havia levado essa questão ao conhecimento da direção da unidade escolar para que as devidas providências fossem adotadas;
A Seduc/GO ressalta, ainda, que por meio da Coordenação Regional de Educação (CRE) de Luziânia, assim que tomou conhecimento da situação, deu início ao processo de apuração dos fatos com vistas ao melhor desfecho para a situação com a participação de uma equipe multidisciplinar, formada por inspetores escolares, tutores pedagógicos, assessores pedagógicos e dos profissionais do programa Ouvir e Acolher;
A Secretaria de Educação frisa também que a equipe do Ouvir e Acolher foi acionada imediatamente para o trabalho de acolhimento da estudante e de combate ao bullying no ambiente escolar, com a presença de psicólogos e assistentes sociais.
Nesse momento, todos os esforços são feitos no sentido de assegurar à estudante o apoio para a continuidade de seus estudos durante o seu tratamento de saúde, visando, sobretudo, seu bem-estar.
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