
A megaoperação das polícias Civil e Militar nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, deixou marcas profundas na população e reacendeu o debate sobre o uso da força em ações de segurança pública. Com 120 mortos — incluindo dois policiais civis e dois militares —, o episódio se tornou o mais letal da história do estado e deixou imagens que chocaram o país: corpos espalhados pelas ruas, um cachorro baleado e moradores tentando identificar familiares entre os mortos.
A médica voluntária Maria Sampaio, formada pela UFRJ, chegou à Penha por volta das 9h da manhã com o intuito de socorrer feridos. O que encontrou foi um cenário de desolação.
“Não tem nada para fazer aqui. Achei que iria encontrar pessoas feridas, precisando de atendimento médico, mas só há pessoas mortas, todas já em estado de decomposição”, contou.
Segundo Maria, uma fileira de corpos estendidos na pista foi a primeira imagem que viu ao chegar. Ela ainda subiu a mata com moradores para tentar remover outros corpos, mas sabia que havia muito mais vítimas espalhadas.
“Eu trabalho como médica há 3 anos, já vi muita coisa difícil, mas nada se compara a isso.”
A médica classificou a situação como “um cenário de guerra”, onde o cheiro da morte e o silêncio dos becos resumiam a tragédia vivida pela comunidade.
Durante os intensos confrontos, o 3º sargento do Bope Heber Carvalho da Fonseca, de 39 anos, trocava mensagens com a esposa. Nos últimos minutos de vida, enviou o que seria sua despedida:
“Estou bem. Continua orando.”
Minutos depois, Heber foi atingido durante o tiroteio. O silêncio do telefone que antes enviava palavras de fé se transformou em desespero para a família.
Heber e o colega Cleiton Serafim Gonçalves, também do Bope, foram levados ao Hospital Estadual Getúlio Vargas, mas não resistiram aos ferimentos. Ambos eram reconhecidos dentro da corporação pela coragem e pelo histórico de operações de alto risco.
O corpo do sargento foi velado sob forte comoção em uma cerimônia reservada, enquanto colegas prestavam homenagens nas redes sociais.
No Complexo do Alemão, a manicure Beatriz Nolasco vivenciou um dos episódios mais brutais da operação. O sobrinho dela, Yago Ravel Rodrigues, de 19 anos, foi encontrado morto e decapitado.
“A cabeça estava pendurada em uma árvore. Um morador tirou e levou até a gente. Não dá para esquecer essa imagem”, relatou.
Yago trabalhava como mototaxista e, segundo a família, não tinha antecedentes criminais. Beatriz responsabiliza a polícia pela morte do sobrinho e pede justiça.
“Fazer operação é ok, mas o que aconteceu foi uma chacina.”
A Polícia Militar afirmou, por nota, que a Ouvidoria e a Corregedoria estão à disposição para receber denúncias e garantiu o anonimato dos denunciantes.
Na Vila Cruzeiro, a violência também atingiu quem não tinha voz. Scooby, um cão da raça cane corso, de 7 anos, foi baleado enquanto estava deitado no terraço de casa. O tutor, Hélio Fernando de Abreu da Silva, descreveu os momentos de pânico:
“Provavelmente ele estava deitado na hora do disparo. Minha esposa começou a chorar: ‘Pegaram meu negão’. Não podíamos subir para socorrê-lo porque era muito tiro.”
Scooby passou por cirurgia, sobreviveu e recebeu alta, mas seguirá sob cuidados. De acordo com o secretário municipal de Proteção e Defesa dos Animais, Luiz Ramos Filho, somente em outubro, sete animais foram atendidos em hospitais municipais com ferimentos por disparos durante operações policiais.
Os moradores dos complexos relatam dias de medo e paralisia. Escolas e comércios ficaram fechados, ônibus foram incendiados e dezenas de famílias não conseguiram sair de casa por horas. O clima de terror foi tamanho que muitos ainda têm medo de registrar desaparecimentos.
“As pessoas estão sumindo e ninguém sabe para onde foram levadas”, disse uma moradora que preferiu não se identificar.
O sociólogo Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, afirma que o número de mortos revela “a falência de uma política baseada exclusivamente na repressão”.
“O Estado age como se estivesse em guerra contra parte da própria população. É preciso repensar o modelo, porque o resultado é sempre o mesmo: mais mortos e menos segurança.”
Enquanto as famílias enterram seus mortos, o governo do estado defende a operação como uma “ação legítima de combate ao crime organizado”. O secretário de Segurança Pública, em nota, afirmou que o objetivo era “enfraquecer facções criminosas que controlam o tráfico na região”.
Entretanto, entidades de direitos humanos e organizações civis pedem investigação independente sobre as circunstâncias das mortes e a proporcionalidade da força empregada.
A Defensoria Pública e a OAB-RJ anunciaram que acompanharão as apurações e oferecerão apoio jurídico às famílias das vítimas.
A tragédia reacendeu a sensação de que as comunidades continuam presas entre o medo do tráfico e a violência policial. Para muitos moradores, as operações que prometem segurança terminam com mais luto e desespero.
“Aqui a gente vive escondido. Quando não é o bandido, é o tiro da polícia. E no fim, é sempre o pobre que morre”, lamentou uma moradora da Penha.
Enquanto o Estado contabiliza apreensões e prisões, a população contabiliza perdas humanas, lares destruídos e uma ferida aberta que dificilmente cicatrizará.
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